além de mim


           Eu, parada no ponto de ônibus. Esperando vaga. Esperando o dia do pagamento. Eu esbarrando em carrinhos de supermercado e atendendo ao telefone alô pois não em que posso...
          Pois não. Eu estou parada no tempo. No tempo corroído de mesas escolares em que aprendi tabuada, dos bancos de bailes em que atordoei medíocre a ausência do convite à valsa, o tempo corroído como o fígado, da cachaça na mesa do bar ouvindo barulhos de risos, abraços, e talheres. Além de mim.
          Além de mim, sentada na mesa do bar violando lembranças com cerveja cara e cachaça barata, estão sentados nas prateleiras uns versos mal escritos e abortados, sobre o que eu era, o que eu podia, o que fosse, todos os tempos e modos verbais.
         Eu olho meus dedos, meu nariz, minha testa. E além da testa o espelho. O espelho é a casca do meu miolo. E se pudesse haver o espelho raio-z, aquele que, sem radioatividade, visse o que vai por dentro do osso, por dentro do rim, além do leucócito, eu veria os reflexos de minhas fraturas e farturas. Dos medos escravos e de, em certos dias, um bater de asas para longe que... ficou perto.
         Parada, meio da rua, meio a ausências de ausências – abraços que foram longes, risos fantásticos fantasiados e temores que à noite não me deixaram mover.
         Eu, parada no ponto. Comprando alimentos ricos em conservantes. Chorando em cima da página 23 do Ferreira Gullar.
         No espelho meu reflexo guarda um bicho tétrico. Mal me reconheço.
         Mas do espólio resta, ainda, a gula. Se esconde debaixo do convexo. O mundo está lá fora mais ensolarado que nunca, ainda que a chuva não pare, ainda que eu assista por satélite tremores de terra, e que as pílulas também deixem trêmulas minhas mãos... (eu e a crosta, buscando acomodação). No fim, as garras escondidas. Tudo além de mim se move comigo.
       O mundo, da janela, se repete infindo, com esbarrões, com tiros, com outdoors, com beijos nas esquinas, com medos dentro de ambulâncias singrando ruas em que os deuses se suicidam todas as manhãs.
       Mas eu sou apenas a mulher do apartamento sete que às vezes chora de madrugada. E que está parada, no ponto, no tempo. E tudo isso, o mundo, a janela, os carros, as asas, e eu, depois, bem depois do reflexo do espelho, do invisível e do solene, somos fúria e arremetemos contra fortalezas...
       Eu, nua, me abraço ao mundo, muito além de mim.

Comentários

  1. Olá, vc não gosta que eu comente, mas nao resisto!!
    Vc me lembra Jose de Alencar em seu livro Iracema!
    Iracema é um Poema em prosa!
    Vc como poeta que é, tambem faz presente a poesia na prosa!
    Vejo as rimas que bem poderia dividir em estrofes e versos!!
    Muito lindo e gostoso de ler!!
    Beijos.

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