Doce


   
Os tempos eram dificeis. Sunab, remarcação de preços, congelamento de salário. Meu pai chegaria toda noite em casa com algum abismo ou alguma esperança. Essa um pouco menor. Debaixo da boina ou do quepe, alguns medos em trincheiras. Mas a gente era menino só queria saber se ele tinha trazido jujuba. Ou bala de caramelo.
  Teve aquele aniversário de meu pai, num ano em que minha mãe teve que fazer muitas contas, letra redonda e pequena, com aqueles números que eu não entendia . Mas era aniversário do pai, e minha mãe foi no mercado, comprou três latas de doce - doce de côco, doce de leite, goiabada – embrulhou em papel de presente, enfeitou com fita e o nome de cada um de nós. E por toda a tarde ficaram os embrulhos sobre a mesa, em oferenda para um dia comum ser um pouco doce – Era o começo de eu crer em poesia.
  À noitinha meu pai chegou, na janta cantamos parabéns, abraçamo-nos debaixo da luz fraca da sala, a tv apitando uns maus presságios, e algum anjo assoviando em cima da bandeja de pastéis na mesa pequena onde todo mundo se batia e se encostava. Aí cada um de nós, com nossa pressa de agradar mais, deu seu presente, que ele abria sorrindo imaginando o gosto do doce.
  – hum, adoro esse.
  Eu fotografei na memória aquela mesa, aqueles risos, e minha mãe fazendo de conta que não sabia que tudo aquilo era triste. E ninguém viu que era. Eu era uma menina pequena e uns sonhos grandes. Eu fiz algumas promessas, e sobrevivi de algumas delas. Respirei todo tempo de algumas horas como essas, ao redor da mesa, aprendendo a farejar doces no amargo e a escutar anjos onde só há pastéis, alguns de vento.
  Hoje, meu pai assiste a tv ainda gritando maus presságios. Sempre há um mundo por acabar, mas ele lê a história do mundo pra contar na padaria. Ele não usa mais farda, não usa mais quepe, mas usa até mais sorrisos. Aceita alguns fuzilamentos e dorme ditando algumas regras que já caíram, como as ortográficas.
  Eu, fugi do meu exército e não acredito em regras. Sofri alguns exilios, armei outros pelotões. E às vezes lembro da menina doce naquela mesa, trança no cabelo na fita de laise, trançando uns sonhos entre o doce de leite e a goiabada. Penso que ainda cuido dela. Ela anda esquecida num canto do meu jeito, como uma boneca de olho faltando. Mas algumas coisas que ela jurou, eu cumpro. E continuo sorrindo o mesmo riso chorado. E o mesmo aperto na garganta quando é de tarde, o sol está rosado e o ar está quente. E eu fico querendo minhas meias pelo joelho, meu joelho ralado, meu uniforme brasão laço de fita, e passar na padaria ganhar um pirulito multi-colorido que machuca o canto da boca de tanto açúcar.
  E hoje o aperto na garganta veio, pleno mercado, porque notei aquela lata de doce de côco. Não era uma outra qualquer, era aquela mesma .. do outro século. Fabricam ainda? Talvez voltaram a fazer, só esse mês, só essa vez pra eu ver um pouquinho.
  E eu parei no tempo olhando aquela gôndola. Por uns minutos eu era menor, de perna fina, e usava trança. E minha mãe estava lá de olhar comprido na prateleira esticando o dinheiro da carteira pra caber um riso. Fazendo ideia do que não dava.  Ou exagerando quando as coisas melhoravam um pouquinho.
  – escolhe, filha, o que cê gosta mais.
  E eu fiquei escutando minha mãe, não querendo ir embora daquele ano em que nosso amor teve o preço daquelas latas, mais o embrulho. Eu aprendi com o tempo a ser devota dos momentos singulares em que a vida toda cabe numa lata de doce, e um embrulho. Ou quase cabe, quando não cabe vem pro canto do olho, fica úmida e transborda.
  Meu pai , mesmo, não chora. Uma vez um brinquedo que não cabia nos proventos do mês. Coisa tola. Nem lembro o brinquedo, lembro do olho molhado. E ainda que aquelas estrelas nos olhos, duvido que sejam outra coisa - é só choro mantido em segredo – acho que pouca coisa faz meu velho chorar.
  Eu, por pouco, um doce de côco.

Comentários

  1. A memória é matéria prima essencial da poesia. Pela memória abatemos a onipotência do tempo ao girar sua máquina para trás. A fantasia colore os fatos e nos comove.

    Dani, fico impressionado como você cresce no que escreve. Nos seus escritos você fica do "tamanho de criança, tamanho de torre, tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem" (Drummond)

    É doce seu texto sobre doce. Adoça o paladar dos olhos e alcança a alegria do que é revivido. O que me faz lembrar de uma pergunta feita pelo escritor Bartolomeu Campos de Queirós: "Quem colocou o desejo de açúcar no coração das formigas?" e faço eu outra pergunta: Quem colocou o sonho de poesia no coração humano?

    Comovente e Lindo!!!!

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  2. Mami leu outra vez com os olhos molhados , não só no canto mas transbordando de todo jeito. Hoje a lembrança é mais vazia...'eramos cinco...

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