Eu faço tudo certo
Eu faço tudo certo. No quinto dia útil do mês recebo meu salário. Porque fiz tudo certo, nos outros 29 dias inúteis. E no dia seguinte mesmo, eu ando pela cidade cumprindo um ritual mercenário: Banco,mercado, farmácia, banco, códigos de barra, débitos na conta, cartão magnético. Ético.
Quando sobra, crédito ou ânimo, páro na frente de uma livraria. Há algum tempo não compro nenhum livro, mas algo em mim que ainda resta cheira do túmulo as páginas virgens. Ou as páginas defloradas dos livros usados – orgias. Eu não sou mais aquele ser humano, eu sou um fulano automático e rígido e pragmático, que tolero alguma urgência, sem poesia alguma, fumando um careta a cada seis horas e nunca mais um baseado na gaveta. Vou ao banheiro caço alguns gemidos durmo deito levanto aciono o despertador mais vezes do que dou bom dia, nas primeiras horas da manhã.
Às vezes desejo coisas como uma mesa de bar pra perder tempo. Uma cama menos limpa pra trepar. Um enjôo pra me vomitar no meio da noite. Mas estanco os desejos, olhando pela janela apenas quando o dia não tem cor suficiente pra me cegar.
Se ando na cidade e deixo o pensamento andar em pouco maior velocidade, fico querendo transbordar como uma cidade suja cheia de bueiros que entopem e não aceitam a água da chuva. Fico querendo parar na frente do teatro municipal, e vender aos passantes uns 4 poemas por cinquenta centavos, como já vi um mendigo, pedir como um mendigo, por os pés no chão e me sujar de rua e me sentir só como um mendigo querendo um beijo. Querendo comer poesia. Comer a frente do teatro. Tudo que quero é ser burlesco. E não, é mentira porque sou um ator de comédia à frente de um balcão amarelo, seja lá qual seja sua – ou nossa – cor.
Eu sonhava em ser um atleta, um bispo, um asceta, um cara de óculos escrevendo a sua maior obra. Eu sonhava em ser qualquer coisa, qualquer coisa.
Mas eu sou um homem burocrático esmagado pela necessidade de um terno, um registro na Carteira, uma 3x4 na carteira, uma nota azul na carteira. Meus pés virarão feito os de um curupira na direção da feira livre, meus olhos na direção do livre, e eu me encaminharei pra drogaria. Alguns comprimidos para comprimir minha cabeça – que ainda pensa, aonde vai, aonde vai... – no travesseiro cheirando a amaciante, porque eu sangrei porque eu vomitei porque eu chorei nele mas a lavanderia impede que o lugar em que durmo tenha cheiro de vida, e eu impeço minha vida de existir sem uma lavanderia um porteiro um entregador de jornal de pizza um marginal – embora eu tenha banido dela todos os poetas marginais.
Tudo me trouxe, esses dias, essas noites, a essa noite sem sono, em que quero queimar minha identidade, e meu dedo numa ponta de cigarro. Emblemática. Ali está a sacada, ali está o ar livre. Eu, metido nas minhas coordenadas geográficas, sem sacar nada, e o céu cheio de estrelas – alguém me contaria. Eu, nunca contei as estrelas.
Quando fechei a porta à noite, esta noite, liguei uma música, quis que tivesse alguém na sala pra beber comigo, eu não tinha nem a porra da bebida. Eu tinha cereal matinal, tinha congelados, tinha uma vaga noção de que um dia eu quis fazer amor na mesa dessa cozinha. Mas a cozinha morreu, está branca, gelada, limpa, lisa. Eu não quero uma mulher branca, gelada,limpa, lisa. Tudo que quero é um violino. E dele tirar um gemido.
Podia ser um violão.
Hoje em dia todo mundo tem blog. Mais ainda, todo mundo escreve em blog. Sigo e passeio por muitos desses blogs e, sem nenhum exagero, talvez este texto é o melhor que já li.
ResponderExcluirO escritor José Castello diz: "com medo ninguém escreve". O seu texto é extremamente corajoso e com uma liberdade típica dos poetas, aliás sua escrita é altamente poética.
O texto todo é muito bem construído e belo. Destaco dois trechos que, sinceramente, me emocionaram, que me elevaram ao gozo estético:
"por os pés no chão e me sujar de rua e me sentir só como um mendigo querendo um beijo. Querendo comer poesia. Comer a frente do teatro. Tudo que quero é ser burlesco."
"no travesseiro cheirando a amaciante, porque eu sangrei porque eu vomitei porque eu chorei nele mas a lavanderia impede que o lugar em que durmo tenha cheiro de vida"
Dani, lerei atentamente seus futuros, e já por mim esperados, textos.
Bem humano Dani.
ResponderExcluirCompartilho do comentário acima.