pequena prosa do samba ou da fuga


   
     Atravesso toda noite a rua com o passo trôpego de quem vem da surra de quem vem do samba de quem vem da fuga. É de lá de tudo isso que venho. Sou um sujeito invisível quase sempre amável e inflamável. Labuto, bato o ponto, limpo os pés, socorro algumas aflições alguma fome alguma sequela de amor partido, com mertiolate ou cachaça.Quando acaba o dia, me desamarro, me desarrumo e sorrio, aliás sorrio a maior parte do dia. O ônibus sacolejando quase acorda em mim algum sonho que ameaça amolecer a mandíbula. Mas sou fácil, dentes tortos, riso mais torto. Sou sozinho, mas distraído não tenho inimigos. Sou um pouco um cachorro que atravessa uma rua – sem cuidado, sonhando o outro lado. Às vezes os carros páram, às vezes buzinam, me lançam improváveis nomes, a mim que sou tolo sou quase planta. Porque sou calado, sou tímido, e você vê, sou verde - nasço na primavera, mesmo nos meses de julho. Só não sou de todo planta porque não me cravo, em rua, em dono, nem nada. Sou dessa rua, como daquela. Sou de toda fase da lua.
     Tenho uma vida comum não comungo não excomungo. Tenho umas vontades perenes, tenho coragens que vem e vão. Se chove sorrio se clareia rio mais, ou mar, ou mar. Se tem samba me dano, gasto sola, gasto soldo, e ganho algum tormento ... no dia seguinte me calo em suspenso. Sonho todo com a calçada amarrotada do balé noturno. Se tem medo eu sem lampejo fujo, me escondo no vento, aperto um tempo, segredo uns cantos, me arranho no escuro. E se me pegam, esses dias de maré, esses dias de só, aí me defendo encolho aguento a surra. Surra desses dias de cansar de andar com beiço dando prenda, pra nego responder com arranhão... então cravo os dentes, amarro a língua, que já quase não lança dado, não dança ao lado mesmo de nada, porque eu só sambo sozinho eu só durmo sozinho eu só vivo mesmo em perigo.
      Sou um sujeito um pouco bacana que dorme apertando num braço uma vontade de andar no mundo, de dançar quadrilha e de virar um bêbado fundamental. E bêbado de vida de céu colorido de canção baixinho  é que tropeço no dia pra me derramar me alcançando.
     Colo o rosto na vidraça, colo o ouvido no chão da praça, e chacoalho com os encontrões e também com as questões. Se me estragam me conserto achando que sou boneca de pano. E porque à noite é frio e não tenho abraço, me faço uma manta estranha, dos fiapos dos estragos que em mim vão desfiando....
   

Comentários

  1. Dani, ao ler o que escreve é possível perceber que você está se construindo, se fazendo, se autocriando, se inventando com a matéria, se etérea, eterna, da poesia.
    Vejo nos seus escritos a dura constatação existencial de Sartre, Kafka ou Beckett, porém expressa com grande doçura e profundo encantamento!
    Você optou pela poesia de viver, ou melhor, por viver de poesia, escrever poeticamente é consequência de um impulso para o sonho.
    A realidade (o estranhamento do real) vira beleza e prazer ao passar por suas letras.
    Sua prosa poética é rara!

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