CRÔNICA DE AMOR MAL CONTADA




            Ele riu e eu vi que dali por diante ele sabia. Sabia que eu estava segurando a ponta do estofado porque minhas mãos eram ansiosas demais. E que eu era uma pessoa estranha apontando para o espaço com um riso nervoso, dizendo coisas inúteis, com a respiração em cinco por quatro. Eu só sabia de uma coisa – ele ria.
            Eu engolia a conversa. Ele repetiu que não gosta do ser humano. Eu não quis concordar. Mas sinto que entendia. Gosto dos poetas e dos filósofos. Especialmente os que fecham os olhos para ouvir um solo de contrabaixo. Falta-me paciência para os que consomem etiquetas, os que consomem planos de aposentadoria e dormem de meias - “tenho um bom emprego, um pacote de viagem, algumas ações no banco, um companheiro, eu o amo certas épocas do ano, gemendo dócil desejos burocráticos como uma cortina nova para a sala”.
            Eu olho os dedos dos meus pés.
            - Quero uma vitrola.
            Ele me insulta. Diz que não ouço boa música.
            (Eu me perco. Acho que não ouço boa música. Eu estou aqui para ouvi-lo, eu espero que esta música demore muito para que eu não precise ir embora. Ofendo meus preceitos sobre mim mesma, me frustro e passo a mão pelos cabelos – eu deveria ler mais livros).
            Fumamos um cigarro e tivemos ideias geniais que esquecemos depois.
            Espalhamos os lps no chão. O chão estava limpo, meus pés tocaram uns solos de guitarra, esquecidos na minha compenetrada obra de escutar aquela música, querendo que ele pedisse meu ouvido.
             Apaixonei-me. Cruelmente. Após  36 minutos.
          Logo vi que ele não me amaria. Sou um tipo pobre de ser humano. E ele não gosta do  ser humano. Tenho o riso fácil. A lágrima aguardando qualquer sopro. E tenho fina ao meu redor, ainda que nua, minha armadura. Afirmo meus talentos maiores – tornar-me invisível e afetar-me a tristeza de planta que desconheceu água, pobre e aflita. Embora meu olho escorregue fagulhas, meus dedos não serenem... - e eles quase tocando seu queixo pra entender amor com aquele homem...
            Ele ria. Eu sabia que ele não me amaria. Mas eu incorrigível, quis.
            E por um instante o céu esteve calmo.

                *****
           
            Eu abri os olhos. Ele guardou os lps, sobrava um celofane. Ele me inquiriu o excesso como se com uma crise de existência...: “não é deste disco..”. compreendi. Vi que ele cumpriria meus rituais.
            Eu moraria junto dele numa casa simples, branca, o chão de tacos como num dia, um tapetinho à porta onde eu ouviria chegarem seus pés. E leria seus livros e lhe perguntaria dúvidas metafísicas. Eu dormiria dentro dos seus cabelos ouvindo a chuva em noites sem grilos. E lamberia pacífica seu lábio inferior.
            Os celofanes guardariam os discos, em seus lugares, ressonando. Eu lhe faria café. Eu lhe faria um filho. Eu lhe serviria meu sorriso. Seria uma heroina singrando a cidade colhendo mistérios para contar no jornal, comprando pão e querosenes, e restando de pés descalços e cabelos molhados no chão de taco a lhe segredar uns planos como se a vida bastasse assim e a paz mundial fosse como a minha. Aguardaria ele terminar de balançar na rede e sonolento vir até mim me contar quantas estrelas. Eu leria para ele, enquanto ele olhasse em paz uma nuvem, um menino, uma hora pela janela.
            E teria fé por cinco minutos.
            E inventava uma vida.

Comentários

  1. Toda crônica de amor é mal contada, por um motivo muito simples: todo erro está no coração do acerto. A realidade está sempre grávida de outras possíveis realidades,que só trazemos à tona por amor ao risco. O risco é nossa sina. Arriscar é entregar a chave da nossa vida secreta para o escancarado mundo da imprevisibilidade.
    Dani, amar, sonhar, poetizar a vida, só é possível com muita inocência. "A inocência é um estado clandestino na ditadura do mundo; tem de ser astuta; tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar; seduz as criaturas..." (Herberto Helder)
    Inventar uma vida é o que fazemos o tempo todo. Escolher (que é sempre um salto no abismo) é inventar. Somos a soma surpreendente das consequências das nossas escolhas.
    Muitas coisas nos atrai, nos seduz e é entre elas que tentamos permanecer como se ali o enigma da vida virasse um campo de flores ou um céu de estrelas próximas, ainda que enigma.
    Que em todo momento possamos dizer: "Como dois e dois são..."

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