Contra os contos de Natal
O zumbido do ventilador me une a algum tipo de vida. No chão
pisca o reflexo do neon de algum anúncio da noite, drogaria-karaokê-mulheres
fáceis. Não sei. A cidade lá fora é um bicho que agoniza todas as noites por
volta das três da manhã enquanto eu abro mais uma vez o maço de cigarros.
Abri dois livros. Nada me disseram.
Abri os dois olhos. Está escuro.
Abri todas as minhas escotilhas. Inundou-se minha noite de
sonhos parcialmente demolidos, e sorrisos que nunca foram dados.
Um bando de estudantes passa cantando debaixo da minha
janela.
Pressinto que em todos os apartamentos ao meu redor existe
vida. Talvez exista. É véspera da véspera de natal. Eu posso facilmente ignorar
isto pois minha tv não é ligada há alguns meses.
Mas a minha memória insiste em ligar na tomada aquela
arvorezinha atônita que derrubei com raiva há alguns anos.
Eis que a lembrança passa como um documentário na porta do
meu armário.
Eu sei que as crianças choraram, eu sei que a mulher teve
medo eu sei que eu quis causar a terceira guerra mundial e sei que tudo entornava
enquanto eu derramava comprimidos no meu olhar perdido.
Não sei por que procuramos a guerra quando buscamos paz. Talvez nós homens não tenhamos entendido nada, não tenhamos perdido nada e sigamos buscando “flying
saucers in the sky”.
A música havia parado, eu mesmo levantei a agulha da vitrola
e gritei que o som estava alto demais. E ergui a mão alto demais. Ergui o copo
vezes demais. Brindei ao escuro ao silêncio à falta de eco quando me vi sozinho. Eu quis estar sozinho.
Quando a mulher e as crianças escoaram pela porta – malas,
tralhas, ursinho sem um olho – eu sabia que as estantes me engoliriam, eu
dormiria até morrer de uma maldita dor de ouvido.
Não sei se há vida em outros planetas.
Não sei mesmo se há vida no meu pulso, eu apenas estou
infectado de uma tentativa lunática de descobrir se meu isqueiro ainda acende,
eu não faço a minima questão de pôr fogo nestes papéis - medidas drásticas não se
enquadram ao meu natal soturno. Estou infectado por uma vontade de olhar pela
janela e descobrir que eu e o cão estamos sozinhos ignorando a data
comemorativa esperando algo para comer. eu, para beber.
A janela em frente estará aberta? A luz estará acesa? Haverá
um homem e uma mulher despidos freneticamente aludindo ao sentido de uma vida? Haverá
um solitário sentado no meio da sala ouvindo blues? Não há espaço nessa janela
para uma criança acreditando que papai noel lhe trará bicicleta boneca
soldadinho? – não, a criança não existe no meu mundo de luz neon, cidade-bicho, chão enormemente brilhante no escuro, do reflexo do que apenas imagino estar por trás
desta janela...
É véspera de véspera. Eu não tenho luzes, não tenho fitas,
não tenho nem mesmo um bom poema arrancado a um cínico sentimento de culpa ou
de tragédia, que soe como um coral do exército da salvação a cinco milímetros
de entrar na minha porta – e eu tentando em vão fechar os ouvidos e partir
minhas últimas cinco lembranças em cacos pequenos demais para ferir.
Eu só tenho este vago sentimento de estar sozinho, ouvindo
um zumbido no calor da noite. Que as crianças crescem em algum parque, longe de
todas as árvores que derrubei.
E que as árvores ainda crescem.
O neon desenha cicatrizes
nos meus pés, e porque em pouco tempo será natal creio que eu mesmo sobreviverei.
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