Ano Novo



"A black eyed dog he called at my door

A black eyed dog he knew my name

I'm growing old and I wanna go home"


Black Eyed Dog, Nick Drake

       Limpei na manga o resto do último gole. Depositei as notas encardidas no balcão, quase altar. Estava pra cair a primeira chuva do ano. Olhei em volta, o bar ia morrendo. Alguns palitavam os dentes. Alguns pautavam a lua. A noite respirava fundo.

      Andei à toa antes de regressar, o peso da chuva que não chegava nunca me afogava  em meu próprio dilúvio. Eu quis pedir a deus um pouco de paz, como se uma infusão que me fizesse dormitar breves momentos. Mas lembrei-me que desfiz-me de deus, na mesma mala que umas revistas antigas e uma camisa puída.
     
      Os primeiros grossos pingos da madrugada itinerante. Apressei-me. Não sou romântico, nem me agrada chegar em casa ensopado. Algumas ruas, duas ruelas, o umbral, e estaria em minha pequena jaula. Uma parede descascada, um teto onde se via um número 438 – sempre fitei aquela telha tentando adivinhar um mito, um oráculo – e toneladas de  expurgos espalhados pela estante e pelos meus poros. Embora estes doloridos.

         Quando quebrei a esquina senti que era acompanhado. Virei-me sem susto, apenas curioso.
         
         Um cão, um cão palpitava atrás de mim, sereno e cuidadoso investigando meu caráter.

       Eu parei, ele parou. Observou-me lento com dois olhos negros meticulosos e longos de velhice experiente, de velhice afável de cicatrizes. Não sei o que lhe pareci. Aos homens eu sou apenas um homem duro, solitário, amedronto criancinhas, sou ignorado pela polícia. Mas tenho meus crimes confessos. A chuva começou sua transgressão nos meus cabelos.

       Voltei a andar e o cão cuidadosamente avançou uns passos. Quase enfiava-se entre minhas pernas. A chuva fria ouriçava seu pelo manchado. Sujo, tinha umas feridas. – acho que ele me reconheceu.

      Vi de longe a lâmpada de minha varanda acesa. A casa soturna que era meu castelo. Eu era o rei condenado que bebia umas doses para dormir e uns comprimidos para acordar, que sentava-se no seu sofá demolido – pressionando os botões do controle em descontrole catatônico até a televisão virar algumas listras coloridas indicando que nada mais havia a fazer.

        O cão me seguiu até a porta, farejando minha possível simpatia, sabe lá deus de onde ele presumiu que eu a tivesse. Virei a chave no portão, e ele esperou paciente que eu o convidasse – talvez para jogar poquer. Eu já não adivinhava mais nada. Talvez eu quisesse uma companhia para o poquer, a chuva  executava um bruto jazz nas telhas.

         Entrei.

       Busquei qualquer coisa no fogão. As panelas pousavam  hirtas como numa casa de mentira. Nada fumega, nada chia, nada cheira por aqui. Dora foi embora, ela tinha um cão. Eu não o suportava mas mentia por amor a ela. O amor foi desnecessário depois de um tempo. O amor é desnecessário depois de um tempo.

      Juntei uma tigela de água. Merda, o que estou fazendo eu um velho bêbado, cansando um pouco mais seu dia tolo em uma tarefa pouco agradável  de alimentar um cão achado na chuva. O cão me esperava, curioso? sábio? Quando surgi com as iguarias juro que o vi dizer que sim, com a pachorra de quem aprova uma novidade que já adivinhara. “Eu acreditava em você...”.

       Mas o ano mudou, como todos os outros vieram e foram, eu não mudei. Não chamei o cão para dentro, arrumei os dotes sob uma marquise, não me despedi, nada lhe desejei, voltei para casa e torci para a chuva não parar tão cedo já que assim eu dormiria um pouco mais.

         No dia seguinte a dor de cabeça me acordou, bom dia fiel amigo, como sempre. Faltava-me em pouco tempo ela passar a me dar beijos na testa. O café me fez lembrar da noite. Por um curto espaço de tempo eu lembrei do cão. Lembrei do focinho úmido, dos olhos negros que me pareceram os de um deus paciente tentando trazer de volta uma ovelha. Droga - essas parábolas, esses retornos piegas de mensagens de cartão de natal. Lembrei de sua ferida no lombo, para me criticar. E de como seus passos crepitaram atrás de mim enquanto eu pesava sobre a rua calçada.

         Sob a marquise restavam as tigelas, o cão tinha ido embora. Não sei se esperei que pela manhã ele me encorajasse com um rabo acenando como nos filmes que passam à tarde, que ele tivesse ficado ao meu portão, se não grato com meu fabuloso jantar, ao menos interessado nas minhas futuras generosidades.

         Talvez.. ele soubesse que não, eu não mudo. E vá lançar seus passos na sombra de algum lunático que sobreviva em nuvens até ele conseguir um chão. Eu não sou lunático, não calço nuvens, e abdiquei das alturas como um Ícaro neurótico.

           Virei-me e tranquei a porta de um jeito que parecia ter saudade. O cão sabe que o ano é outro. Eu não.

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