Menino de mochila
Nada sou sem a palavra.
Olho para a tela em branco. Tomo um gole de cerveja. Estou sozinha
e após chorar uns instantes no escuro. Lembrei que de 3 décadas certificadas
pelos documentos sou uma pobre senhora que deve ter vivido alguns trinta e seis
minutos.
Como escrever? O que sei da vida? Além das minhas próprias
lágrimas escorridas no escuro entre as paredes brancas?
Só sei narrar quadros pendurados tortos em bares cheirando
a fritura, solitários errando para achar o caminho de casa, sorrisos que por
não terem sido dados foram deixados na fruteira, na copa, para depois. E estragaram.
Como escrever? Sinto-me frustrada.
Bebo mais um gole e então olho uma foto qualquer na parede. O
menino me olha. Ele toma um gole. Ele fica feliz e ri. Eu digo a ele que cuide.
Jesus, esse menino dá trabalho.
Eu também, mas na minha fértil vida de cavalheiro andante
adquiri algumas imunidades parlamentares, outras licenças poéticas. Velhas bêbadas
não dão trabalho – apoie-a num colchão deixe-lhe um balde e ela acordará em
paz.
O menino me dá um sorriso. O menino da mochila.
Eu fico com medo de pedir a ele uma opinião. Ele está vendo
que meu rosto está vermelho. Meus olhos inchados.
Na mochila pode haver um sanduíche, uma garrafinha de
refresco – tão menino tão menino devem ter lhe preparado a merendeira.
Na mochila pode haver gibis de super heróis. O menino de
mochila usa óculos, também, como disfarce.
Eu lhe pergunto sem mover os lábios. Como escrever...? não
sei nada da vida. E ele me crê com os olhos.
Então ele saca da mochila propulsores de memórias, gaiolas
pneumáticas para ideias descabidas, geradores de energia eólica, bucólica, bombas
de gás lacrimogênio acopladas a cadeiras de boteco.
Ele saca uma vida que eu nem inventei. Ele me saca.
O menino me olha da parede, na foto, e ele ri agora um pouco
tonto. Eu também.
Porque enquanto eu tentava escrever tomei alguns goles e
quis sair por aí porque é noite, choveu, e as poças dágua brilham com as luzes
quentes dos postes. Ele, da parede, concorda.
Por trás das lentes ele me olha, e eu vislumbro o menino
largando a mochila, sentado atrás de uma tela branca, daqui a alguns alguns alguns meses de
abril.
Da mochila imagino-o desdobrar caretas, cartas, vozes embargadas, quedas e
erupções, manchas nos sofás e abraços eternos-enquanto-durem em algum corredor.
E sua tela não restará branca.
Enquanto o menino ensaia eu me distraio – dele as palavras saltam
da mochila, como se escondem no meu colchão.
A vida é um sonho. A realidade, convencionada, é uma invenção que a poucos satisfazem. Nada sabemos de nada, muito menos do nada. Todo sofrimento deseja ansiosamente se tornar narrativa. E a cura estética se completa quando há quem acolhe nossa história, às vezes, mal contada, outras, rebuscada e, ainda outras, perfeita e poética, mas sempre, autêntica e exclusivamente, nossa.
ResponderExcluirfui entrando, entrando, quase fiquei emoldurada para sempre...
ResponderExcluirabraço
Eu fico sem palavras para expressar o que ler vc me desperta. Vc tem esse hábito de dizer tudo e eu meio que me abasteço, me identico e me projeto nas suas letras.
ResponderExcluirE quanto mais eu penso, alguém que faz feliz os outros também deve ser feliz.
Preciso dizer que curti? Vc não escreve para as pessoas. Na verdade, vc lê as pessoas enquanto elas pensam que estão te lendo.
Dani, pessoa linda, sua profundidade despretensiosa encanta e não é á toa que sua legião de fãs não para de crescer.
Bj!