CONFISSÕES DE UM HOMEM LIVRE
Escolhi o exílio. Não fui
deportado, não fui segregado. Decidi. Não, eu não era filiado a algum partido
político, não, não distribui panfletos – embora quisesse – não planejei atentados
– apenas um, mas era eu o alvo.
Não
se condoa, isso foi há muito, muito tempo. Hoje tenho fios brancos despontando
por toda a cabeleira. Talvez eu fosse uma criança quando parti, talvez eu fosse
ainda hoje se não tivesse partido. Hoje não sou. Sou um velho. Frequentemente
despejado das conversas que gostaria de ter, usualmente extirpado de vidas que
gostaria de partilhar... como um órgão viciado. Sou um órgão viciado, embora
todo meu tempo tenha tentado me tornar um cidadão admirado. Admirado pelas
vidas que admirei. Não, eu não fui. E hoje talvez nem tenha mais esperança de
ser admirado pela minha coleção de livros que não tenho. Pelo ótimo gosto
musical que perdi. Pela cor dos meus olhos – que mudaram, molharam,
perderam-se.
Não,
eu não me perdi, eu pedi asilo. Quando vim embora saquei umas notas, perdi
propositalmente algumas anotações – versos, versos de contas onde havia planos,
- e arrumei cuidadosamente alguns crimes nos bolsos da mochila. Eu achei que
precisaria deles para justificar minha fuga. Sempre achei que eu fosse
injustificável. Morri de amores enquanto me torturava no espelho com um caco de
cólera por não ser exato o bastante, não ser nem poeta o bastante para me dar o
direito de ser completamente imperfeito. Eu quis uma barba grande que me desse
respeito. E vim embora, eu, minha barba fingindo um sofrimento que tinha e
minhas notas amassadas dentro de um bolso com as balas prontas para o momento
de carregar a arma – se fosse preciso eu me condenaria à perpétua, a solitária,
à tortura de assistir a banda passar. Tudo era em mim fingimento e fuga, eu não
sabia de nada, eu não sabia quem eu era, eu não estava em paz, eu só queria ter
motivo para chorar se fosse o caso, numa parede verde descascando de uma casa
noturna, olhando meu rosto partido ao meio em um caco de espelho que me
convidasse a despejar setecentos mililitros de mim mesmo na privada torta que
fosse enfim um lugar merecedor do meu despojo.
Não
fui despejado, eu parti. Quando vim, trouxe até a cozinha, na mão cerrada,
minha última chave, e vi que minha mãe previa, do meu passo arrastado, o que eu
trazia na mão. Ela aquiesceu, derramei a chave na última mesa posta. Eu havia
derrubado essa mesa, e ali estava ela de novo posta. Tudo o que eu derrubasse
sempre voltava a ser posto e eu estava querendo que toda a compaixão do mundo
fosse para o quinto dos infernos. Passei por eles – pela mãe, pela compaixão e
pelo inferno – a mãe baixou os olhos, mas mãe não deixa nunca de achar que o
filho volta. Talvez ela chorou, mas impassível passei pela última porta.
¨¨
Não
senti liberdade. Não senti alívio. Não senti paz. Só parti. Trajava minhas mais
antigas memórias nas primeiras horas, porque me despediria.
Minha mãe apressando o almoço para o tempo de abotoar minha camisa que
eu sempre erraria. O cheiro de canela dos doces de sábado de manhã. Um vento no
cabelo que sempre teria sido a mão de minha mãe orando para o santo anjo me
guiar me proteger me guardar.
Ele não guardou. Eu parti.
¨¨
Hoje
depois de tantos anos penso. Chego em casa, entorno um copo d’água na garganta
obstruída. Destruo os registros do dia no isqueiro, para não guardar
lembranças, tudo que faço é - aparentemente - em legítima defesa. Danço no
caminho do quarto um bolero avesso, pelo teor da refeição, oleosa e alcóolica. A
cama me protege apenas enquanto não amanhece. Enquanto isso, escrevo histórias
que guardo no lixo.
Minha
mãe quer notícias. Eu não as dou. Então é como se eu só houvesse sonhado. Também
ela. Pode ser que esqueça.
Assim
como o exílio é minha paz temporária, ao menos no caminho entre a porta e a
cama, destrocando meias verdades no papel, inutilmente, porque além de tudo que
não me tornei, de tudo que por descuido entornei,... nem com todo esse
fingimento de sofrer o que sofro, não me tornarei poeta. A vida é dura. Eu treino
para ser assim também.
Sempre
imaginei que acharia o caminho de volta, quando houvesse uma anistia. Mas agora
estou velho. Não estou cansado, apenas olho sem cor um céu pesado e sonho cada
vez mais com a porta batendo com o vento. A chuva cairá. Mas agora... depois da
fuga ter se tornado tudo, de constatar que só longe existo, deixando de
insistir....
Que
sou longe, meu lugar é sempre outro. E, com o tempo, aquilo que não sinto na
pele ou no pelo deixa de fazer sentido. Até o cheiro de canela, até o sopro da
minha mãe nos meus cabelos.
Tudo
deixa de ser denso ou eterno – só meu fígado denuncia que estou vivo.
¨¨¨¨
Ainda
assim, acho que cumpri minha pena. As grades estão abertas há séculos.
É ATÉ CARNAVAL E EU QUERO IR PARA CASA.
Mas
agora.... onde?
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