insônia


     Olhei pela janela. Três da manhã, um resto de chuva escorria no cheiro fresco da madrugada. Enfim eu estava mansa. Olhei longe todos os restos de luzes. O prédio em frente agitava uns três apartamentos insones. Ao longe um avião piscava sua ida ou seu retorno. Eu me achei no meio do caminho apitando pra ser salva. O quadro da janela era a cidade. E a cidade dormente me comovia.
     O que se passava em cada janela acesa? Uma cozinha, por certo, onde um recém-chegado boemio esquentava uma marmita de macarronada. Ou um estudante esquentava um café pra seguir viagem. Uma sala respondendo cores de tv, talvez falando sozinha a um sofá em que se recolhia um homem sonhando e ressonando alto. Um quarto em que um casal discute quem vai ficar com o quadro. Um quarto em que alguém deduz poemas esmiuçando três dias passados no caos. Um quarto em que uma  garota pinte as unhas porque está sem sono. Um quarto cuja parede uma garota marque de unhas porque não tem sonhos.
     Um quarto de hora passa. Eu sou uma janela acesa.
     Meus sonhos eu piquei em pedaços e joguei pela janela. Ameaçei a ordem natural das coisas na minha dança caótica de dias caçando poesia noites caçando amor, e no meio das coisas e no meio de pernas a vida.
     Interpreto as luzes, cada pessoa é uma janela de apartamento. Curiosa tento ver por dentro. Muitas vezes as luzes estão acesas de madrugada. Muitas vezes as madrugadas estão acesas dentro dos olhos. Interpreto os olhos.
     Olho pela janela minha imensa paz ausente. Um carro passa, a torneira critica o silêncio, alguém bebe perfume alguém corta os pulsos alguém geme avançando sobre outra carne alguém chora com as mãos na cabeça e dorme e dormem todos - bebendo cortando gemendo chorando – janelas como ladrilhos da cidade acesa.
     A cidade treme, ainda, mole. Não há outro dia. É sempre um mistério se o sol vai voltar. Pouco a pouco as janelas se apagam. A noite vai parindo um céu branco. E  o baile dos deslocados se desarma. Os loucos caminhando pé ante pé para não despertarem as crianças, os loucos deitados pernas entre pernas buscando ventres - o anverso da paz, os loucos buscando fumaça perfume versos com a tv gritando tiros e enganos – a noite é inocente. A noite é pura. E seus pequenos ladrilhos no mosaico das gentes.
     Durmo com estrelas nos olhos – enfim mansa. A vida é grande.Bela e insuportável como um mistério. As luzes estão apagadas, e quem sabe as dores que vão por dentro. Salvem, primeiro, os poetas e as crianças.

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