saudade

Ela morava naquela janela. É um prédio antigo de apartamentos onde eu imaginava um grave elevador com portões de ferro, e histórias de amor e dramas mundanos pavimentando os corredores com alguma infiltração.
Alguns dias da semana ela deixava os chinelos, o cesto de linhas, o pequeno óculos que dependurava na ponta do nariz. Na calçada eu a via sumir levando o quadriculado irregular da bolsa apertado entre o braço e o peito. Passos miúdos, apurando a vista, quase singrando canal.
Depois subia as compras, fazia um suco, esticava as pernas. Eu podia ouvi-la suspirar, enquanto reolhava o encarte do supermercado ou um anúncio de circo.

***

Depois de um tempo quem subia as compras era o rapaz da feira.
Então despertava um pouco tarde, a cortina avisava sua mão amanhecida. Trazia livros de alguma estante, invisível para mim. A janela era meu ponto de vista.
Um dia ela desistiu de trazer livros, depois de algumas vezes depositar o pequeno óculos na mesinha e a cabeça na mão espalmada.
Depois espetava demais agulhas. Colocava a mão na caixa da vitrola e fechava os olhos. 
Percebi que o tempo se derramava, fechando com céus púrpura, abrindo com dias de calor de verão. Uma tarde de domingo ela preparou um bolo.
Depois dormiu.

***

Queria ouvir dizer que ela tivesse um filho meritíssimo juiz em alguma comarca do interior. Fazendeiro no mato grosso. Ou filha no acre com dois netinhos que às vezes lhe mandasse fotos de batizado.
À noite a TV pintava cores difusas no seu rosto adormecido.

***

Um dia não trouxe o cesto de linhas. A TV não foi ligada. As laranjas, folhas verdes não chegaram. Por dias, minha lente órfã.
Então cobriram a mobília.
Levaram a mobília.
Trouxeram mobília.
Um casal de pombos empoleirou-se num canto da sacada.

***

Eu a pude imaginar.
A TV estivera apitando falsos sorrisos, o cesto de linhas esparramado fiando-se a si mesmo. 
Ela abrira o guarda-roupa, esticou o vestido sobre a cama viúva. Banhou-se, prendeu os cabelos com brilhos como se para a missa de natal. A bolsa com fecho de madrepérola. Ventou a caixinha de pó de arroz sobre o rosto.
Girou a chave no trinco.
Deu à luz o corredor.
E passeou ouvindo flautas em um caminho de laranjeiras, até ir ficando pequena, pequena... pequena demais para eu nao amá-la.

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