dezessete graus

   
    É a essa hora, essa em que a noite deixou de ser tarde rósea e vai pesando um teto púrpura. Mas ainda é fresco, eu ando de mangas dobradas e desabotoados dois ou três desejos tímidos. Tomo um certo ar de digna. Cumprimento as janelas das sacadas - as floridas - descanso os olhos nas geometrias das fachadas coloridas. Sem saber reza nenhuma deixo os sinos me dizerem as horas e os velhos mesmos bêbados me legarem seu faro de livres.
    É a essa hora e mais ou menos dezessete graus. Engulo sede e ânsia de braços, embriagada da paz lúcida de loucos que perdem - ou jogam fora - a memória.
    Fico querendo participar da noite, não assim passar pela porta: ser mordida, debaixo do corpo macio e fresco de três estrelas que logo contagiam irmãs.
    Fico querendo suportar entrar no bar de luz sépia. Sozinha, pedir uma dose, soltar minhas costas no ladrilho - azul e branco como um céu que se desdobrasse em quatro paredes. Sentar na mesa do canto, entornar com os dedos no tampo umas notas sem partitura, molhar a garganta, mandar descer mais uma, dividir com o santo, trocar o copo, sentir formigar o corpo, duas doses de sólida fé no ser humano, contar ao garçom minha última grande sacada, secar o lábio superior com as costas da mão - direita - e ter a habilidade de compor - esquerda - cinco versos sobre um guardanapo, como uma mulher em pleno gozo de faculdades mentais, liberdades democráticas, e de sutiã. Preto. Pequenas flores. Vermelhas.
     Fico querendo ter um arroubo, escrever de batom um poema no espelho, em que fixasse na matéria fria meus quarenta graus interiores.
     Fico querendo até voltar para casa depois de encostar os dedos em dois muros com grafites, achar que sou mesmo tão assim também artista, sorrir para um manequim de loja sorrir para todos - somos irmãos. Voltar para casa, virar a chave e encontrar: um casamento, um peixe num aquário, amarelo, uma estante de livros, três bananas numa fruteira. E teus dedos me sabendo - especialmente pelas manhãs - e teu cheiro eternamente no travesseiro. Um céu que se desenhe no encontro cego do que seja sua mão - meu umbigo - minhas coxas - tua língua.
     Essa hora da noite que me diz no meu ouvido uma nota saída do meio-fio, do meu pavio. Curto. Essa hora sem angústia ou euforia, de cheiro morno, de não ter metáfora, só um arranhão - áspero - no dia macio. Todas as horas cegas do dia, esquecidas no bolso de uma calça, esmigalhadas com sabão na máquina de lavar-roupas, ansiando pela brutal solidez da noite ainda morna, a única real. Nessa hora da noite, então, em que sinto amor, fico querendo ser livre ou feliz ou beijar sua testa. Qualquer coisa de gozo, de paz, de puro.
     Herdar dos velhos mesmos bêbados os tropeços, um anjo da guarda, as sirenes.
     E uns guardanapos, borrados de poemas.

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