O DONO DA METÁFORA

    E então minha mãe ainda hoje, nas reuniões de domingo, nas discussões sobre os rumos do clã ou em qualquer oportunidade de me apoquentar com questões políticas da família, está indignada desta sua filha não ter vindo a ser doutora – médica pediatra, advogada, tradutora juramentada. Qualquer coisa que o valha. Que valha!, osso.
     Eu, sem querer entrar no mérito das escolhas, sou refém da palavra – e minha mãe deverá orar a todos os santos quando eu avisar que estou indo cobrir uma manifestação no centro da metrópole. Eu direi – eu não creio em deus, mas se os santos ajudarem o texto ficará bom, a foto bem enquadrada, e eu sã e salva irei pro bar encher o copo de outras saudades pra preencher um guardanapo com um poema despetalado.
     E se ela se pergunta por que – POR QUE??? criada com tanto carinho ... – segue minha resposta, descoberta esta manhã porque lembrei de criança. A culpa é sua mesmo, mãe. Pai e mãe. Articulados, nessa tarefa de criar um filho.
     Da minha infância de poucas vezes joelho ralado – condição assegurada pelos excessivos cuidados da mãe – eu me lembro, por exemplo, mais que de muitas brincadeiras, é dos meus dedos sujos de tinta ao recolocar obstinadamente a fita da olivetti no lugar, quando ela escapava, ligeira. Minha olivetti meus pais me deram, de presente de natal, quando eu tinha uns seis anos de idade. Desde então meu coração ficou verde piscina. Como a pequena amiga portátil. E minhas digitais selaram pacto de tinta com o rolo de fita rubro-negra que meu pai ensinou a rebobinar.
     Quando íamos ao centro passear, minha mãe nos levava à livraria. As cores de todos os lápis, e as lombadas de todos os livros me faziam salivar de gosto. Ou era o delicioso cheiro de hamburgueres e sucos da lanchonete onde ela nos levava. Não sei. Na minha memória as coisas se misturam e eu imagino que se eu pudesse comeria as folhas dos livros, lamberia a tinta da máquina, só para saber que delícia deve ser provar as palavras como elas vieram a me provar.
     Lembro também que foi por influência dela que pela primeira vez entendi uma metáfora. Não, eu não sabia o que era uma metáfora, uma metonímia, uma catacrese – nome de doença, de velhinhas que tossem serenas umas lembranças que nem lembravam e viram poemas. Minha mãe costumava cantarolar umas canções, e até hoje ainda parece que a qualquer momento vou ouvir tão nítido como se no ar um som pudesse esbarrar no meu braço. Uma das que eu mais gostava era do Chico. Lembro de questionar minha mãe – por que o vestido cada dia mais curto? Ela explicou singelamente que a heroína esperava no porto, grávida, e conforme sua barriga ia aumentando o vestido ia ficando curto. Achei aquilo tudo maravilhoso – dizer com uma coisa outra coisa que se quisesse dizer, sem dizer..... e de tantas outras vezes eu quis me tornar o dono da metáfora.
     Mas meu pai não se livrará impune. Este meu pai que tocava bob dylan pra meninada brincar de bang bang pela sala. Em certo domingo, no quartel de meu pai, rodeei pela primeira vez aqueles lápis gigantes que, meu pai contava, são de Itú. Para mim, tudo foi gigante. As altas portas, os lápis, os coturnos engraxados dos soldados, as histórias de prontidões. E a máquina de escrever – encanto dos meus primeiros anos. E eu vi a beleza, da sacada da sala de trabalho de meu pai, donde via-se o jardim, onde havia um laguinho com peixinhos tartarugas e o gramado onde havia gansos – gansos! Que eu temia. E um pouco mais adiante a sala do dentista. Que eu temia. As armas? não. Crianças têm temores estranhos.
     Logo, discurso! Já que não farei nenhum na sala nobre do Nobel ou do Pullitzer, fica este no papel. Agradecimentos ao pai, que primeiro me iniciou na gigante máquina de escrever da primeira sessão do décimo nono batalhão logístico (Sentido!! Sentido? Sentidos...). Quartel donde, para mim, qualquer arma teria se tornado flor (begônias, magnólias, ou caramelos).
     À mãe, que sutilmente uniu o prazer táctil dos livros novos – presentes pelas boas notas – ao odor das frituras de uma saudosa lanchonete carioca, de bancos altos donde penderam vezes meus pés a flutuar desejos de versos (diversos, côncavos, e convexos).

     E a eles, minhas desculpas solenes: por pura inabilidade de seduzir as palavras, essas moças que não se deitam por um copo de conhaque, senão por um pacto de fidelidade – morrer juntos!, não lhes darei um Nobel da Literatura. Nem um Jabuti – dono dos meus mais insanos sonhos infantis. Talvez uma menção honrosa ou horrorosa no prêmio de poesia do bairro mais brejeiro de alguma cidade dócil bucólica – bufólica – mineira. Mas é de vocês, meus progenitores, apenas de vocês a culpa – inafiançável, inapelável, perpétua! – de ter criado uma poeta.

Comentários

  1. Vou postar como Anônima para me esconder(?) da culpa(?) de ter criado uma poeta...
    Nada me faz nem me fará mais feliz do que ver, ler e ouvir que aquela menina que devorava Monteiro Lobato, e inventava um jornalzinho só pra ela e a familia é e está num "bairro brejeiro de alguma cidade mineira" feliz!
    Feliz fazendo o que descobriu no seu coração e no seu pensamento cheio de idéias e sonhos a realizar.
    Mas fica aqui a promessa: "- Ainda verei um Jaboti em suas mãos!".

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    1. faltou uma vírgula depois de "e a familia, "

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