COMO DEVE SER O CÉU (viagem num dia claro)
Antes do tempo: Dia claro. Trânsito. Janaína sorrindo depois da
feira. É terça-feira. – eternamente lembrarei seu sorriso, disse, ...
Barulho: o trânsito passa por
cima do sorriso, se espalham sacolas, o dia termina.
Cadê Janaína???
Minuto 12: Depois de voltar do torpor, esfregando os olhos. Verifiquei
que não estava na faixa de pedestre. Não estava sequer na avenida. Não me
encontrava, certamente, no Rio de Janeiro. Pesquisei as paredes, o chão, o teto.
Olhei em volta, a assepsia do saguão. (Janaína, você ia querer pendurar
bandeirinhas e escrever nas paredes aqueles versos como nos guardanapos. Ias
pôr flores).
Sensação de que perdi, ou que me
perdi. No lugar dos apressados transeuntes do meio-dia, os rostos tranquilos de
alguns companheiros de espera, e a pachorra metódica do atendente na mesa. Um
senhor que sentava ao meu lado limpava a lente dos óculos. Deitara um livro
surrado ao lado, numa cadeira vazia. Uma pequena senhora aguardava fazendo
crochê, e me mostrou a foto dos netos, saltando de uma carteirinha bordada. Uma
menina de uns 10 anos se ocupava de fazer uma casinha de pedras para uma
formiga que insistia em subir-lhe no dedo. Céu? Eu não sou um anjo. Janaína,
conte a eles. Que roubamos flores, e subimos torres. E que fizemos amor,
amores. Janaína, você ia rir.
Minuto 22: Um pesado rapaz de lentes grossas e uma gaveta atulhada
de papéis chamava o público por senhas. Só então reparei no papel que haviam me
colocado no bolso. “Senha 1.500.457 – Prazo máximo de atendimento: 120 minutos”. Olhei
o painel – apontava a senha 1.500.453. Alegrei-me – oras, será rápido. Como
deve ser o céu?
Minuto 27: Entreti-me a imaginar a história de cada um dos meus
companheiros de sala. Como era a família do velho que lia. Há muito não falava com eles. Esquecera o nome dos filhos, e a esposa
lhe era mais estranha que o novo móvel do hall. Lembrava o nome dos personagens
de livros e quando falava apenas sabia dizer citações. "O essencial é invisível
aos olhos”. A menina que perturbava a formiga era órfã. Adoeceu de pneumonia,
quem lhe cuidava eram as freiras em um albergado. Morre-se hoje de pneumonia?
Meiga a menina, fingia doces em panelinhas de latão para as bonecas tolas que
nada provavam.
Interrompi a atividade criativa. Não
notara o rapaz no canto da sala. Tímido, mas daquelas tremendas caras de digno.
Comprazia-se de estar ali, como se dissesse a todo tempo: “eu sabia”.
Eu? Não, eu não. Desconfio até
que houve uma falha no sistema. Talvez, no céu também? Nós, Janaína, que nunca críamos...
Minuto 35: Passada meia hora de qualquer espera já me torno
impaciente. Tivesse aqui trazido um livro. .. nenhum som. Aliás, a senhora que
fez amizade com o rapaz tímido comenta no canto, comovida com a pureza do
lugar.
Noto que os que são chamados, e
recebem seu protocolo, são levados por carrinhos, sabe, Janaína, como aqueles de
golfe? Porque o céu é grande e precisamente deve-se chegar nos horários. Como
as senhas que apontam o tempo de espera. Absolutamente e apenas no horário.
A senhora artesã e o rapaz tímido foram
embora, dividindo comovidos o carrinho. Amigos? Amigos, Janaína. Não há
traições no céu, gostarias de saber.
Minuto 45: “95% dos pastéis me decepcionam”. Foi a última conversa.
Janaína respondeu alegre, “Então porque ainda os compra?”. Eu admiti –
esperança. Ela virou os olhos deliciosamente, com os lábios sujos – Sim, como
as paixões, novas pernas, novos braços, histórias sempre mais ou menos mal
contadas. 95% me decepcionam. Mas Janaína sorria.
Aí, o automóvel.
Minuto 67: Novos cidadãos chegam ao saguão, mais confusos que eu. A
mulher cruza as pernas à minha frente.
Eu, libidinoso, não, Janaína,
apenas curioso: Haverá beijos no céu? Haverá orgasmos?
(Minta, Janaína!!! Grite pelo comunismo e que deus está morto e vá pro inferno!!)
Esqueço a mulher, me perturbo.
Meus pés estão adormecendo.
Minuto 88: Acho que cochilei um pouco na cadeira. Um silêncio tão
frio agora que os amigos se foram e a menina parou sua obra de construir
casinhas para insetos.
“que teu lirismo não tenha
adjetivos.... deixe que seja só lirismo”.
Tua assinatura nas minhas costas.
Estavam vermelhas tuas unhas?
Minuto 90: Já não há mais ninguém neste saguão pálido desde há
muitos minutos. Foram-se todos, muito seguros, com seus deferimentos nas mãos.
Por que não me chamam? Levanto. Sento. Me pergunto se o céu aceita reclamações.
Me pergunto se é certo reclamar, porque afinal estamos todos dentro do prazo
estabelecido. 120 minutos. Mas... será que esqueceram-me aqui? Vou perguntar – não ofende, de repente o
responsável está dormindo. Costumam acontecer assim fenômenos como bombas
atômicas.
Minuto 119: O painel apita a mesma canção microtonal. Minha senha. Levanto,
recolho a mochila onde vinha um sanduíche embrulhado. Meu estômago embrulhado.
Há fome no céu? Ou estou no inferno. Percorro o saguão até o funcionário úmido.
Eu estou úmido. Volta-me a sensação de estar perdido. De ter perdido. Janaína,
há doces no céu?
Nas mãos do funcionário, um
pesado carimbo molha-se na almofada azul marinho e imprime destinos no campo
apropriado do formulário.
Estarei eu no campo apropriado do
formulário? Quererei eu um formulário? Janaína, e nosso chão de taquinhos nossa
rede nossa janela alta nossa varanda fumaça.... Janaína, nunca quis ser
apropriado! Quis azulejos – azuis, azuis – na cozinha. Eu encostaria tuas
costas no céu gelado do piso, da mesa, dos azulejos. Céus...
Minuto 125: Enfim, tenho o documento, após um breve questionário que
respondi e o funcionário digitou com 2 dedos em sua tela frenética. “Esta é sua
chave, tenha uma boa estada”.
Então, como deve ser o céu.
Mando notícias.
??????: Conto cerca de meia hora pela posição
do sol e das nuvens. Após toda meia hora de espera me impaciento. Penso que será essa a
eternidade. Penso que preciso pendurar umas bandeiras pelo céu, dar uns socos
no ar, gritar um nome vulgar. Penso em você, Janaína. E na tua orelha. Gritar
um nome vulgar.
Modeuso, nem sei ... viajei completamente...coisa mais linda!...
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