Achados e perdidos

Damião não sabe quantos anos tem.  Ele não faz aniversário, pelo menos não sabe em que dia. Nunca teve documento. Registro, cpf, nis, pasep. Digital, 3x4, carnê, ficha. Papel algum.
- Damião você existe?
- rrum.... ôoooi... uai sinhõ, sim sinhõ, que deus proteja.
Damião atravessa a pista debaixo do sol do meio-dia, de galochas, levando fardos de mandioca. À troca de um, dois reais, cinquenta centavos, que leva de imediato ao primeiro balcão. O dia, em prestações de goles de cachaça, pagos à aipim. A vida em prestações de sol-a-sol em ligeiros prazeres de esquecimento. E o sol do meio-dia, a pista trêmula do mormaço.
O repórter, de bloquinho na mão, escuta, tenta outro depoimento do personagem bizarro para o quadro “pelo brasil”, “pelo mundo” ou pelo raio que o parta que Damião não se despacha.
- hmmum..... ooooo.... cinquenta centavos, um real, pra mim beber uma pinga.
E fica de trazer as raízes depois. E traz.
Mas não depõe, nada. O repórter suspira.
Damião existe, só.
****
Adriano de Figueiredo Mendonça Junior. Figueiredos-Mendonça daqueles que escrevem todas as letras do nome, um pingo no final. Família que teve em tempos idos muita pompa e circunstância. A Adriano, coube a herança do “Junior”. Ponto.
Bancário e economiário, conforme código da ocupação cadastrada no IBGE. Adriano sonha em ser comissionado no banco, em viajar no fim do ano, em trocar o carro e em ver o gerente assando em banho-maria. E tem um dom especial.
- ....comecei encontrando documentos....
Conta que em questão de uns dois anos deu com cerca de 15 RGs perdidos. Topava com eles no chão, deixados em balcões. Cansou-se de ir a rádios locais pôr anúncios, procurar donos perdidos pelas seções de achados. Resolveu colecionar os documentos. Deu pra colar na parede da sala os desconhecidos esquecidos.
Com o tempo Junior adquiriu maiores aptidões: começou a achar objetos. No começo eram os que os clientes mesmo esqueciam na mesa do atendimento. Chaves de carro, cartões magnéticos, canetas, bilhetes. Depois pela rua – notas de dois, tesourinhas de unha, alianças, chaves, pentes... Junior catava todos, organizava por cronologia, cor, ordem alfabética, arrolados assim os bens de alheios despojos, na salinha de estar do bem cuidado apartamento de Junior - a diarista que o bem cuidava estranhou a decoração mas achou que nova moda do patrão. Ao lado da esteira de corrida e do quadro impressionista, se adaptava a bengala.
Junior desesperava, sombrinhas somavam um temporal no apartamento que encolhia.
De dia Junior vendia títulos de capitalização disfarçados, e batia o ponto demarcando suas seis horas entre formulários e discursos-padrão, repetindo erros de sistema, sonhando com a capa da revista caras no saguão do dentista, com o carro da quatro-rodas, com os frívolos amigos do gerente, este assando em banho-maria. Puxando a cadeira para os clientes, aqueles com saldo médio, escolhendo-os dentre os que entrincheirava atrás da pilha de processos, da direita.
À tardinha saia, inevitavelmente encontrando coisas dos outros. De tanto achar coisas Junior evoluiu. Deu pra começar a achar, também, pensamentos perdidos. Sentiu sentimentos alheios, sonhou sonhos dos outros, que ele ia achando e catando, colocando na salinha junto com as palavras-cruzadas.


Junior fechou-se em casa há dias. Perdido entre chaves e sonhos, não sabe mais quais são os seus.

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