reticências

                O ar parado, e isso parece que é em todo planeta. Espero algo assim como o fim do mundo, mas não me movo. A camisa no varal tampouco se move e ouço um inseto contra o teto enganar-se enquanto a janela aberta denuncia nós dois em cárceres escolhidos.
                Que vida prevê esta acrobacia? De longe é como se eu não fosse responsável, meu próprio tempo está parado e não vejo você envelhecer ou perder os dentes.
                Algumas mortes televisionadas, e minha vida e a sua num videoclipe. A noite virá se o mundo não acabar, igualzinha. Sigo conservando a fé mas bebo, por segurança.
                Olho a porta, como tudo imóvel. A sala esvaziada, um cinzeiro, a palavra ceniza. Decido que algumas palavras usarei em outros idiomas. Poderíamos criar nossa própria língua. Uma que dissesse coisas lindas. (No videoclipe minha língua cede à sua língua, roçam-se, liquidam-se, lânguidas).
                Rezo pelo barulho da chave. Essa chegada familiar. Pelo alívio. Pela companhia. Pela chuva ou o cheiro da chuva, que nunca mais, parece.
                Penso se você pensa em mim porque já são tantos meses. Um peixe se suicidou pulando do aquário, uma garrafa partida, uma noite ou dez, a página 46 de um livro.
                (Você no videoclipe. Teu sorriso em plano detalhe. Barulho de fita. Fadeout.
                Eu, fadeout, suor, escorro pelo ladrilho. Duas estrelas ainda estavam brilhando da última vez que vi).
                Lembro que você escrevia com reticências. Você se deitando ao meu lado. três pontos. Dedo no meu umbigo. três pontos. Olhando meu olho azul. Três, três pontos.
                Tomo uma cerveja na varanda para ter sono, porque aboli as pílulas. Acreditaria que o mundo acabou, não fosse pelos caminhões na rodovia. Recebo notícias de Moçambique e de Belém do Pará. Mas de você não ouço nada.
                Afundo as mãos nos mais novos fios de cabelos brancos e no céu acima deles passa um avião. No videoclipe eu morro, e alguém lembra do meu gosto e toca um solo de bateria.

                (minha morte (dois pontos)
                meu rosto deixando de ser, e todos os meus idiomas não puderam dizer nada nada nada....

                estas reentrâncias, nenhuma maquiagem, nenhuma cor que não seja esse azul - três pontos).

                Quero lamber teu peito, tua nuca, para com esta cor escrever dois poemas... Mas roubo palavras dos outros porque em mim o sangue parou e brota apenas de uma pequena ferida nas costas da mão para indicar que não morri.
                O calor segue sendo anunciado, o tempo seco, todos estão parados. Há duas noites não durmo e fico escutando o ruído surdo do peito contra a fronha.
                Lembro que você dizia que eu sou uma boa pessoa. Isso é banal. Eu queria mesmo era ser uma cigana com brincos borrando de batom sua omoplata.

                Ontem mesmo choveu. Mas foi ridículo.

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