poesia sem nenhuma razão

Sou a poeta sem amor. Vampiro de histórias contadas na embriaguez de anônimos relatos noturnos, repórter do desdito alheio, tradutora do que não se diz.
Ladrona das palavras que não sei pronunciar.
Recolho frases deixadas por desesperados, apaixonados, desiludidos. Interpreto guardanapos com despedidas, rabiscos em muros como olhos vidrados em portas que já não esperam. Leio linhas das mãos.
Assalto uma porta que bate e gritos na escada ou murmúrios – que decifro em solene respeitoso silêncio.
Meu silêncio, esta minha esterilidade, mal me aconselham nas solitárias madrugadas nos passos perdidos atrás de uma novidade, sem palavra sabor coisa no controle remoto de uma tevê que pisca há muitos anos o programa de auditório de domingo desta vez vazio como nos outros.
Antes de dormir penduro metodicamente sobre o assento minha luxúria e minha paz inutilizadas. Minha guerra sem inimigos, esses demônios.
É possível e triste que eu seja uma poeta falsa. Mas só sei sentir pela esferográfica.
Queria ser um velho poeta bêbado, de incontáveis amantes, que fumasse um cigarro aceso em outro, e que arrancasse os cabelos e partisse com sua dor infinita uma garrafa uma mesa uma janela e vomitasse três versos sinceros.
Ou apenas um bêbado antigo e que pudesse dormir na rua debaixo de um poste e ser varrido pela manhã por um funcionário público ou da manutenção. E que então levantasse, inteiro dignidade, meu corpo meu chapéu e meu desprezo – minha dor exclusiva – e sem saber uma puta linha de literatura rabiscasse no meio desse gesto vacilante um verso que dissesse tudo.

-"...o que eu sofri, por causa de amor, ninguém sofreu"...
**

Mas não serei um velho poeta bêbado. Sou uma moça, e das menores, e com sorte viverei em um bairro arborizado e darei bom dia ao varredor quando sair disfarçada de comprar jornais a farejar pistas da madrugada.

Comentários

  1. Quão bom que se tire as vestes da razão e deixe nua a poesia. Essa tentativa de por em palavras o que as palavras nunca poderão dizer é aproximar os abismos humanos. Poesia é a superação e a magia de encontrar palavras para o que não tem palavras, pois "quando temos palavras para algo já o ultrapassamos." Friedrich Nietzsche

    Manuel Bandeira, por sua grandeza, é o poeta menor, assim como a moça menor fica enorme podendo dizer, "entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre, tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem" Carlos Drummond de Andrade

    Dani, seguiremos sempre embriagados pela Vida e farejando o que há de mais vivo n'Ela.

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