Biscoitos


            Era o Rio de Janeiro nos anos 80. Herdo daquele tempo toda uma memória de matéria econômica. SUNAB, remarcação, inflação, planos miraculosos. Eu vivia minha primeira década e meu país era um caos. Eu sabia quando minha mãe saía muito cedo de manhã que era pra fila do leite ou da carne, até que ela aprendeu a fazer carne de soja e leite de soja. Não por ideais veganos, mas porque meu irmãozinho acabara de nascer, e meu país andava escondendo todas as vacas.
            Embora o tempo era amargo, minha mãe de então era doce. Nunca faltou o com que se lambuzar – cantoria, música, coisas inventadas. Mas às vezes ela também era triste. E tinha pouco som. Minha mãe era surda e cantarolava, e eu sempre achei o mundo uma coisa assim de tudo possível.
            Aos sábados a gente não tinha escola e era difícil agüentar a ansiedade de três crianças sem passeios dentro de um apartamento ínfimo. Todos nós éramos de poucos amigos. O Rio de Janeiro para mim sempre foi o meu condomínio na Rua Piraquara, e o caminho conhecido entre o portão 3 e a escola. Meu pai tinha medo de gente. Minha mãe, tristeza de gente. E eu cresci achando que gente não era coisa assim pra mim. Na falta de conversa, aprendi a ver e escrever as coisas pra conversar comigo.
            Mas nessa época minha mãe era feliz ainda e a felicidade dela entornava em vasilhas porque ela inventava doces com o que tivesse nas prateleiras – sempre com o pouco que tivesse se podia fazer uma gemada, que a gente comia com pão e ficava com dor de barriga. Às vezes era um bolo – o mais sem pretensão – colorido de anilina azul ou cor de rosa, que ela trabalhava com confeitos coloridos até parecer um bolo de festa.
            Também havia um certo biscoito que ela resolvia fazer pelas manhãs, quando chorasse à noite?, quando tivesse vontades? Eu, então, não entendia jamais um olhar triste. Dizem, sim, que criança percebe. Mas, se for, eu sempre me fiz a desentendida. Talvez porque meu olhar fosse disfarçado também. O biscoito era só farinha, ovo, leite. O som dela batendo os ovos com o garfo chamava a gente à cozinha – o que mamãe ta fazendo.... Ela nunca deixava chegar perto. Cortava aquela massa promissora em triangulozinhos, que depois enrolava neles mesmos, de um modo seu, pra ficar com a aparência dessas calças que se deixam pelo caminho na pressa do chuveiro, do sono ou do amor.
            Depois de passar no óleo quente (até dourar, diz a receita), nós já tínhamos fomes e desejos. O cheiro bom chegava num fim que ela salpicava e entornava de açúcar e canela antes de acondicionar apetitosamente na lata cor de prata com a tampa azul. A gente ficava namorando a lata, até a hora do lanche, ou até a hora de esfriar um pouquinho pra não ter indigestão.
            Perto dos meus onze anos, a vida era ainda essa coisa dentro do portão, e o calor do Rio de Janeiro me fazia pensar em praias que eu nunca vira, em brincadeiras na rua que eu não brincava e de mundos que eu poderia caminhar longe sem dar a mão à minha mãe. Foi nessa época que recebemos a visita de uma avó – coisa estranha porque, pra mim, família éramos só nós 5. E mais estranho ser uma avó chegada de um lugar longínquo, de cabelos brancos, um modo dela de falar as coisas todas erradas. Uma vó que confundiu a pasta de dente e escovou-se com creme de barbear. Minha mãe explicava que aquela avó era filha de alemães. Que quando pequena só falava em alemão, como ela própria, mas que ela – mamãe – foi pra escola, aprendeu a ler livros na nossa língua, e gostou e foi ficando nossa. Mas aquela avó era longe. Ela era só dela. Ela nem parecia uma avó, tão assim cinzenta e fria.
            Pouco tempo depois, muito pouco, minha mãe anunciou que íamos todos também pra longe. Que não se podia mais viver no Rio de Janeiro. E que agora que o pai se aposentava ela podia voltar a viver perto da família dela. Deixar essa solidão carioca pra trás. Muitos desenhos coloridos ela foi fazendo na nossa frente a prometer o futuro pra gente, atônitos. A gente foi crendo, porque, muito, criança não duvida.
            E fomos, com poucas malas, e eu entendendo de certo modo o mundo que eu já imaginava. Tanta estrada, tanto caminho, pra chegar no mundo novo que ia ser meu. Lembro de não entender mais onde eu estava, tivemos que ter um guarda-roupa todo novo, pelo frio novo que fazia. Vozes estranhas, outras palavras, outras brincadeiras... que só aos poucos fui aceitando. É que talvez a solidão que eu aprendera já fosse minha, muito minha. Da mãe cuidadosa que jamais me deixava ferir e da avó fria que não entendia carinho, eu fui cuidando do meu jeito de ser sozinha. Amando tudo e ficando com os olhos úmidos sem poder sentir nada que não fosse aflito, doído e escrito.
A frieza daquele lugar distante nunca me disse respeito. Descobri que ali estavam minhas origens. Descobri que meu nome era estrangeiro, que minha família vinha do estrangeiro – mas com o tempo fui entendendo que todos nós, quase, viemos. Encontrei outras coisas que eram minhas e eu não sabia. Os olhos verdes haviam sido daquela vó longínqua. Agora eram meus, mas só meu o jeito que eles viam. Mas descobri também que meu calor vinha do céu do Rio, e dos batuques nos botequins onde meu pai me deixava a esperar na porta enquanto comprava cigarros. Que eu sou coisas de agora e coisas de antes e coisas que nunca vi. Assim, aos bocados, fui me construindo, com saudades de não sei que coisas, e neste lugar de agora que era minha casa provisória, eu por dentro entendia. 
Minha mãe talvez entendeu também. Ela, que foi buscar sua família, e cantarolava, agora, a mesma solidão de sempre, e talvez um maior silêncio. Os bolos já não se coloriam de anilina, e para os biscoitos ela empurrava na mão o troquinho:
           - Traz um pacotinho da padaria.
         Eu não queria trazer do mercado ou da padaria. No mercado chamavam de outro nome, um nome estrangeiro que eu não gostava. Tampouco era igual o biscoitinho, endurecido e sem carinho. O de minha mãe era feito de cheiro de canela e manso de massa macia. E eu queria era minha mãe sorrindo.
            Enquanto minha vontade de crescer me dava fome, as receitas da mãe rareavam. Até que o cheiro da fritura e da canela pela manhã nunca mais voltaram.
            Eu enfim cresci e vim embora e também não voltei. As terras anteriores estão longe, e essa é sempre temporária. Mudei de cidade, de estado, de país, e não tenho casa ou raiz. Me encontro sempre onde me gosto e fico enquanto for feliz. Ainda gosto dos gostos de doces e das gentes, embora elas sejam sempre um pouco estrangeiras pra mim.Continuo buscando esses cheiros alegres das manhãs de calor, nos biscoitos e nos sorrisos. Há, ainda, estas pessoas que tenho desejos de tocar, me lambuzando como se a canela e o açúcar, e de me guardar dentro, quentinha, de cor prata e tampa azul. 

Comentários

Postagens mais visitadas