Bilhetes (uma história nonsense)

Compro meus livros em sebos e roupas em brechós. A primeira razão é a economia permitida pela segunda mão – ou 3ª., 4ª., - atribuída ao objeto. Mas a segunda são as histórias que já estão dentro delas. É que eu sou obcecada na vida é por histórias. Janelas que me parecem telas de um longa em que imagino solidões, amores, intelectuais dormindo sobre livros, ou alguém como eu que sonha em ter um pouco de tudo isso. Bilhetes deixados dentro de bolsos. A gentileza da vendedora do vestido – jornalista de beagá – que desejou que eu fosse ter – vestida nele – a mesma alegria que ela mesma já havia tido. Nele há pequenas girafas brancas num fundo preto. Eu, a girafa branca tentando esticar pescoço para de longe ver os internos das casas, ou o ouvido atento às conversas cruzadas no bar, de onde já pari algumas histórias. Não-ficção com licença poética: no fim, é tudo verdade.
Dessa última vez o presente encontrado foi a dedicatória de um livro:
JUCA, NA MEDIDA CERTA DE SEU AGUDO SENSO CRÍTICO.
BEIJOS, TEU PAI.
Setembro, 2006.
Sensacional. Entusiasmada sonhei um Juca e um pai pro Juca, um pai pro Juca que não tem nome, apenas ofício, de ser “teu pai”. Sonhei todas as conversas entre progenitor e rebento. O orgulho do pai de Juca. O Juca mesmo, estudando Antropologia na federal do Ceará. Imaginei cabelos e barbas no Juca, que de óculos aprofunda seu agudo senso crítico de olhos correndo sobre tintas sociológicas. Imaginei os fios brancos do teu pai, que assiste aos telejornais com óculos na ponta do nariz e chacoalha a cabeça corrigindo em monólogo os achaques dos noticiários.
Eu sincera e profundamente imaginei noites de amor com Juca, com essas conversas utópicas todas de intelectuais falidos, antes e depois do gozo.
E um término em que eu lhe atirasse um cinzeiro, por ter me traído com uma loira obtusa que depois o trairia com um engenheiro mecânico pago para analisar a qualidade de produtos eletrodomésticos que estragam tão facilmente como relacionamentos – como o meu e do Juca.
Sincera e profundamente também quis que o pai de Juca fosse meu pai. Que tivesse orgulho e me deixasse em dedicatória o orgulho pelo meu agudo senso crítico. Crítico. Crítico.
Eu teria recebido minha dedicatória com a afirmação que sempre repeti à facção mais fascista de minha família – todos, apesar disso, de muito bom coração:
PAI, SE HOUVÉSSEMOS NASCIDO NA MESMA ÉPOCA, O SENHOR ME ATIRARIA BOMBAS, E EU LHE ATIRARIA COQUETÉIS MOLOTOV.
E da lembrança das bombas foram surgindo lágrimas do gás e dolorosos efeitos das balas de borracha. Mas meu sangue e ideologias vermelhos – ah “este caminhar sem rumo pela América Latina que me mudou mais do que acreditava....” – trouxe memórias e eu dediquei essa história inventada, parte também, porque TUDO na vida é inventado; escrevendo num rodapé um bilhete para o Juca, vermelho como eu, intelectual como eu, militante como eu e com um olhar de quem quer salvar o planeta com um sorriso.
... APENAS SEU BRAÇO NA MINHA CINTURA.
Mas Juca se foi.
Anotei no espelho – JUCA, SINTO SAUDADES. TE ODEIO MAS TIVEMOS ESSES COMEÇOS TÃO INFINITOS.
Já a meu pai escrevi: não creia em bombas, no efeito imoral; creia nos corações de veias abertas e nos sinais fechados para nós que somos... jovens.
E meu pai, em minha história, me devolveria, letra pausada e firme, corrigida a frase na memória centenas de vezes antes de ser escrita:
 ...Na medida certa de seu agudo senso de amor. AMOR. AMOR.
Pelo homem, o ser, humano.
(Juca não se importa e manda também saudações burocráticas, da sacada onde beija a nuca de outra mulher, cuja cor de cabelo desconheço).
Eu – inventora de histórias através de pistas desses objetos encontrados, doados, enjoados. Quero bem a todos. Apesar das bombas.
Beijos, Juca.
Beijos, meu pai.

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