Desabafo


Você tem 36 anos, não tem filhos, namorado, muito menos marido. Ainda não se formou no curso dos seus sonhos.  Não construiu uma carreira de sucesso – leia-se bônus anual e viagem pro nordeste no verão. E já apresenta as primeiras escritas do tempo no canto dos olhos e testa. Marcas tardias da já experiente balzaquiana.
Vê-se como um certo tipo de vergonha nacional, tropeçou em todos os obstáculos da corrida com barreiras.
Totalmente perdida nesse mundo de meu deus. E nem rezar pra todos os santos não pode, porque já não tem fé.
Bem, eu tenho. Em um dos braços escrevi liberdade: viva e deixe viver. No outro, lado do coração, repito infinito o fim do poema de Leminski – o sonho, esse, eu mesma carrego.
É porque eu esqueço quase todo dia, e por isso grudo na pele, à tinta, a tinta que é minha forma natural de expressão. E descubro que eu não tenho 36 anos.
Eu vivi 36 anos.
E salvei na pele cada momento bom que, rasgando, consegui arrancar de um mundo voraz que quase nunca entendi. E que rasgou também meus verbos e canto dos olhos.
Já tive fome – não daquela das multidões miseráveis que só de fé esperam um próximo dia. Já passei frio, mas não daqueles indivíduos-bichos que dormem nos lares dos cães. Mas sim por escolher estar em outros mundos, vendo outras paisagens. Pra estar em outro país vendo outro céu. Pra estar de madrugada vendo as estrelas. Pra gastar os últimos trocados em uma noite gelada com aqueles últimos goles que já nem cabem na noite que não quero que termine.
Eu tendo a pensar que sou livre, mas esqueço que me cobro pelos meus 36 anos – quarenta, quarenta quase!! – e toda vez que alguém acha que eu sou mais nova do que o real, fico feliz, como se só ser jovem fosse bonito e bom. Como se eu, como mulher, tivesse um prazo de validade. Biologicamente improdutiva. Socialmente incoerente. Como  se tivesse de correr porque estou muito atrasada em relação a minhas dividas para com a sociedade. Uma sociedade que me quer lisa, magra, produtiva e impune. Mas eu tenho todas as culpas.
E o fato é que não devo nada mesmo a ninguém. Nem ao cartão de crédito. E às vezes sinto que vivo para pagar. Para apagar marcas. Para pagar erros. Para pegar um trem pra onde eu nem desejo ir.
Você? Tem ideia de pra onde ir?
Bem, eu tenho. No braço direito, meu delicado foda-se . Em outro, o peso leveza de carregar um sonho.
E sim, os melhores sonhos são aqueles de transportar por dentro acordada olhando a lua, passando frio, fome, ou incerteza, mas rindo como se nunca houvesse um ontem em que tudo pareceu acabar. Como se só hoje precisasse existir, contando as moedas pros goles com os últimos amigos. Contando histórias, e esperando aquelas que eu ainda vou viver.

Comentários

  1. Dani, há sempre o risco de nos ressentirmos, e o pior, nos ressentirmos com a vida, com a existência mesma. As circunstâncias e as condições que desenharam e continuam desenhando nossa singular trajetória é fato necessário da vida, que nunca erra. Quando temos algum grau de força que mantenha e expanda nossa vitalidade, gradativamente vamos experimentando o gozo inigualável de uma liberdade, estar sempre no limiar dessa liberdade possível. Quanto menos vulneráveis estivermos às determinações exteriores, maior será nossa liberdade, que é condição necessária para criarmos um mundo próprio. Criar um mundo próprio é encontrar mil maneiras de se alegrar e de afugentar as tristezas. Quando estamos alegres nossa potência de viver aumenta, nas tristeza ocorre o contrário. Mas somente cada um, em sua singularidade, sabe o que o alegra e o que o entristece e, além do mais, essas variáveis estão sempre em mutação. Quando penso naquilo que a cultura, a sociedade nos impõe para sermos "vencedores" me lembro do Kafka: "Não possuo nenhuma das características necessárias para vencer na vida". No entanto, ele produziu uma obra de extrema vitalidade. Não quero vencer na vida. Quero viver! Penso que a culpa e o ressentimento devem ser banidos da existência. Somos frutos da vida. Por que nos depreciaríamos? A vida é o que ela é. E, em última instância, é ela que avalia todas as coisas, que dá a palavra final. Enquanto vivos, a nossa vida, nela mesma, não vale? Por que haveríamos de buscar uma validação externa a nós mesmos? É inevitável que não estejamos em relação. Estamos em constante relação, não só com as pessoas, mas com tudo que compõe a vida, que, reitero, nunca erra. Quando criamos esse mundo próprio nos tornamos mais vivos, o que há de vida em nós se torna significativamente maior. E é a partir desse mundo que singularmente criamos que brota uma profunda, natural e espontânea generosidade. Para doar é preciso ter. E como teremos se não criarmos? Penso que, de tudo isso, vamos ganhando imunidade contra as imposições do capital, da moral, da religião, da sociedade... E não por ressentimento, mas por amor a vida. Criar um mundo próprio, em nossa radical singularidade, é, no fundo, bancar a própria vida. E como você mesma disse no texto: foda-se tudo mais. E, em tudo, a amorosa fórmula nitzscheana: "Minha fórmula para grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo - todo o idealismo é mendacidade ante o necessário - mas amá-lo..." Como nossa singularidade é radical, o que digo aqui é apenas uma singular perspectiva, que não tem nenhuma pretensão de verdade ou de guia, mas é apenas uma partilha de algo que habita meu mundo.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas