recôncavo


não troveja no recôncavo. não relampeia. não nesta parte do recôncavo. não aqui.
onde habito faz dois anos que espero uma tempestade.
apenas em sua casa, em sua casa, baía de todos os santos, venta.
todos os santos. e tenho medo dos barulhos da casa. o vento se entrincheira nos espaços do telhado erguendo o isopor. prevejo gentes subindo pelas escadas escancarando nossa porta e..
olhos vidrados, eu e você acordados em silêncio nos abrigamos sem nos dizer.
de dia somos felizes.
vivo.
*
latitude: 12º 40' 12" S
longitude: 39º 06' 07" W
cruz das almas.
cruz. das almas.
nome soturno... eu alma penando sobrevivo me escondo.
lá de onde sou o dia está escuro. me contam de friagens que não mais adivinho.
habito o semi-árido. a friagem dos silêncios de uma estrangeira que ainda não fala esta nova língua.
sou de muitos lugares.
que lugar me é?
*
o recôncavo se acha no contato de duas regiões brasileiras bem diferentes — o nordeste e o chamado leste, tendo da primeira muitas características (os “tabuleiros” terciários, o solo de massapé, o clima tropical, o elemento negro, a cultura canavieira), mas apresentando aspectos que o individualizam ou prendem mais à segunda.

me acho no vazio entre duas regiões brasileiras bem diferentes – o nordeste e o amor, tendo da primeira muitas características (o calor, a aridez, as verdades), mas apresentando os aspectos que me individualizam (ou prendem) mais à segunda.
*
não estou aprendendo a sonhar esses novos sonhos.
não estou aprendendo a me despedir.
saí pra ver a tarde – o céu era azul e tangerina.
azul e tangerina, não há como ser imune a estar cor.
as ruas ainda exibem bandeirinhas de festas juninas e nós estamos perdendo já o mês de setembro.
como em mim insistem as fagulhas de anos retrasados. estou atrasada estou atrasada.. e os cordões dos blocos me separam das festas.
bebo aqui sozinha sem oferecer gole nenhum ao santo.
me esqueço...
*
a beleza da baía de todos os santos em nada fica a dever à baía de guanabara. tanto num como noutro caso, a baía faz o papel de um pequeno mar interior.

quando menina no rio de janeiro eu queria ver o mar. voar de asa delta. ir ao festival de rock. queria também ser repórter.
30 anos depois salvador. vejo o mar. tenho medo de alturas. de multidões.
ainda sonho.
sou imensa e meu desvario faz o papel de um pequeno mar interior.
mar interior...
*
o mapa geológico mostra que é no recôncavo que os terrenos cristalinos afloram junto ao oceano pela última vez, se caminhamos no rumo sul-norte, do mesmo modo que, a partir dêle, as formações terciárias litorâneas passam a ser contínuas e apresentam suas maiores larguras.  do ponto de vista topográfico, é também o recôncavo uma zona de passagem entre as formas arredondadas, típicas do cristalino, e as formas tabulares, que caem em abrupto através das “barreiras”. ali cessa, atualmente, a grande floresta quente e úmida, que é a mata atlântica, para iniciar-se o domínio da vegetação mais pobre e menos bela, semi-xerófila, que encobre os “tabuleiros”.

tenho medo. de que aqui no recôncavo meus terrenos cristalinos aflorem junto ao oceano pela última vez.
ainda que nele minhas formações tenham apresentado suas maiores larguras.
o recôncavo tem se apresentado uma zona de passagem. entre formas de antes... cristalinas... e as de agora, caindo abruptas através das barreiras.
que serei eu depois das quedas?
rio manso? corredeira? serei eu? tenho medo do depois das despedidas. de vós tenho me despedido internamente como me despeço de mim de outrora, cristalina.
cessará  minha floresta dando este lugar árido, de mim, à vegetação mais pobre e menos bela.. que encobre os tabuleiros...?
*
estou no nordeste brasileiro. ao leste de mim meu coração também se salva árido e forte, cotidianamente.

(Trechos em itálico retirados do artigo R E C Ô N C A V O D A B A H IA Estudo de Geografia Regional, de AROLDO DE AZEVEDO).

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